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quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O CUIDADO QUE DEFORMA (O MUNDO REPARTIDO) - SOBRE O DISCURSO MESSIÂNICO

Discurso messiânico é aquele que, indefectivelmente, pressupõe (e quase anuncia...) o aparecimento de um ‘messias’, um salvador ou redentor, ardentemente esperado, não importando se esse discurso pertença a uma religião ou a qualquer outra ideologia laica que seja; ele representa um modo de ver o mundo - possível, é certo, como qualquer outro. O dicionário define messianismo como “a crença na intervenção de ocorrências extraordinárias, ou de individualidades providenciais ou carismáticas, para o surgimento de uma era de plena felicidade espiritual e social”*; a ‘plena felicidade espiritual e social’ é, em si mesma, uma polarização artificial do ‘Bem’, uma prática maniqueísta, afinal.

O discurso messiânico abre lugar para determinados ‘heróis’, que ‘descobrem’ onde está o ‘Bem’ e onde está o ‘Mal’ da humanidade - assim, bem separados um do outro; e acaba sendo fundamentalmente ‘paternalista’. Paternalista porque, embutindo-a às vezes mais veladamente do que outras, veicula a proposição de que ‘uns pensam pelos outros’, ‘uns sabem o que é melhor para os outros’..., certamente impulsionados por um ideal de humanidade ‘feliz’, de uma felicidade polarizada, e não dialética. Contudo, dentro desse discurso, é difícil conceber dinamismo e troca, naturais da vida.

À visão messiânica do mundo talvez se possa opor uma visão ‘orgânica’, ‘autonomista’ x ‘paternalista’, onde os homens possam ser bons e maus ao mesmo tempo, e onde, por isso, se reconheçam as ‘incongruências’ com mais facilidade, as incoerências como símbolo, não de ‘furos’ teóricos, mas do movimento dialético e interativo de todos os ‘componentes’ da vida humana - sem que estejam separados por nenhuma ‘linha imaginária’, ainda que idealista-de-boas-intenções, a repartir o mundo inexoravelmente.

Para o filósofo alemão, G. W. F. Hegel (1770-1831), a realidade é o ‘absoluto’ (soma dos relativos), mas manifesta-se dialeticamente, partes se opondo, partes se compondo em inter-relação. Na verdade, a dialética reintegra os significados à sua substância; dessa manifestação coexistente de ‘contrários’ é que acaba brotando um siginificado mais ‘completo’. Talvez fosse oportuno lembrar que ‘dialética’, na essência (di(s) + alethés), quer dizer ‘duas verdades’, ou ‘verdades de/para diversos lados’ - mais de uma verdade convivendo, afinal.

De fato, não sei até que ponto o pressuposto idealista/utópico talvez não afaste pensadores messiânicos de soluções efetivamente concretizáveis para o mundo que desejam ver melhor. Pois que, se o mundo que descrevem puder deixar de ser maniqueísta, então pelo menos será mais plausível supor que cada homem possa eventualmente ser herói de si mesmo, ainda que eventualmente vilão, também; devolve-se a cada homem o direito e o potencial de ser mau e bom na experiência di-alética, assim podendo ser, em qualquer fase da história, oprimido ou opressor, carrasco ou revolucionário. Devolve-se ao homem o direito de ser qualquer coisa humana, e basicamente isto.

Qualquer paternalismo salvador é, no fundo, presunçoso. Acreditar nele é subestimar os homens com que ele parece se preocupar tanto... Não vejo com bons olhos esses messias que, consternados, sabem sempre o que é melhor para os outros homens - porque sua presença e postura é uma afronta à  autonomia (relativa, mas de todos) que, de cada homem, compõe a integridade.


(*) Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. (1975) 1999. 3ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

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